Da necessidade de identificar e corrigir os desvios de
conduta no movimento estudantil para forjar valores de
uma prática militante (comissão de organização do III EIV SP) A gente deve varrer o chão e lavar o rosto todos os dias, pois, se não fizermos isso, a poeira se acumula. Mao Tse-Tung No interior do processo de proletarização do nosso pensamento, da revolução que se processava em nossos hábitos e em nossas mentes, o indivíduo foi fundamental. /.../ Na atitude dos nossos combatentes, visualizava- se o homem do futuro. Che Guevara
1 - Valores são traços determinantes da conduta, do comportamento, da postura, do hábito.
Vivemos num período histórico marcado pela banalização do discurso. Por isso, é na prática, muito mais do que no discurso, que os valores se expressam. Quando falamos de valores estamos falando da conduta. Os anti-valores nós os chamamos de desvios. Para todo valor há um desvio correlato: disciplina x indisciplina; solidariedade x individualismo; organização x desorganização etc. Entre um valor e seu correlato, há uma articulação dialética, de modo que a construção de um confunde-se com a desconstrução do outro. Cada projeto político define os seus valores: para os socialistas, a solidariedade é um valor; para os capitalistas, o individualismo é um valor. Portanto, quando falamos em valores, não estamos falando de quaisquer valores, ou de “valores” em abstrato, mas sim dos valores de uma prática militante, dos valores de uma prática engajada na construção da revolução e do socialismo. E, quando falamos em desvios, estamos nos referindo à conduta daquele/a que desvia-se do projeto político do socialismo, e que acaba concorrendo para reforçar as relações viciadas da sociedade capitalista em que vivemos, e que, portanto, deve ser corrigida para se garantir uma prática que verdadeiramente contribua para a construção do socialismo. Quais os valores que os socialistas devem cultivar? Quais desvios devem corrigir? 2 - Mas... qual é a origem da conduta? O que faz com que os indivíduos, inclusive os militantes que se identificam com o socialismo, se comportem de uma maneira que reforça as relações viciadas desta sociedade capitalista? Ele é “culpado” pelo seu comportamento? O comportamento nasce somente e tão somente da vontade e pronto? Ou, inversamente, o comportamento é fruto de determinações externas, não tendo o indivíduo qualquer responsabilidade sobre sua conduta? Ou se trata de uma síntese entre vontade e determinações externas? A origem do comportamento é um dos maiores mistérios da humanidade. Este debate está na origem da própria filosofia. A bem da verdade, esta é uma das grandes polêmicas da filosofia e das ciências humanas e biológicas em geral. O que se sabe é que os indivíduos são influenciados desde o nascimento e permanentemente pelo ambiente onde vivem, entendido como as condições históricas, sociais, políticas, culturais e psicológicas de sua existência. O ambiente influencia e condiciona, mas não determina. Nestes termos, a conduta é uma síntese, de modo que nela estão presentes ambos os elementos: tanto o elemento da vontade ou da opção, como o elemento das condições externas. Em que medida cada uma opera para formar a consciência e a conduta, em que grau, em que momento... em suma, como se dá essa síntese, pouco se sabe e muito se especula sobre. O fato é que a consciência e a conduta não podem ser reduzidas nem a uma nem a outra: ou seja, não se pode dizer de uma pessoa que ela se comporta de uma certa maneira porque o ambiente onde ela vive determinou (como no marxismo vulgar), nem tampouco o inverso, ou seja, que ela se comporta de uma certa maneira porque ela optou por isso (como, por exemplo, a abordagem que a imprensa burguesa faz da violência, pela qual existe violência somente e tão somente porque existem “bandidos”, indivíduos que optaram pelo crime, como se fosse uma questão meramente de opção). Voltando ao que nos interessa mais diretamente: se é certo que, por um lado, nós não somos “culpados” pelos traços de nossa conduta – pois não se trata de uma questão de vontade ou de opção meramente – por outro lado, por sermos humanos e termos a capacidade de refletir, nós somos capazes de percebê-los, estranhá-los e corrigi-los. Portanto, como dizia Che, depende de uma motivação interna: “ter essa motivação interna que incita constantemente a observar os próprios defeitos, a buscar os defeitos para tratar de superá-los”. Assim, para nós, a questão que se coloca é: como despertar no indivíduo essa “motivação interna”, ou seja, este estranhar a própria conduta e a motivação em corrigi-la? Quais são as contradições que levam a isso? 3 - A sociedade de classes é um obstáculo à superação dos desvios nos indivíduos; inversamente, os desvios nos indivíduos constituem-se como obstáculo à superação da sociedade de classes. Um e outro formam um ciclo vicioso: a sociedade de classes é alimentada pelos desvios nos indivíduos, e os desvios são alimentados pela sociedade de classes. Por isso, entre um e outro não há etapas, mas uma articulação dialética: a correção dos desvios nos indivíduos e a superação da sociedade de classes são aspectos diferentes de um mesmo processo. No entanto, no processo de superação da sociedade de classes é necessário que haja organizações capazes de intervir para garantir a justeza de seu rumo. O problema começa quando constatamos que organizações são feitas de militantes e que militantes são indivíduos, que também sofrem profundamente a influência das condições desta sociedade na qual vivemos, marcada pelos valores do capitalismo. Então, como é possível haver organizações capazes de intervir com justeza – ou seja, sem desvios – se os indivíduos que compõem estas organizações são também, eles próprios, influenciados pelos anti-valores próprios da sociedade de classes? Esta problematizaçã o nos leva a constatar que os desvios na militância são um dos maiores empecilhos à práxis revolucionária, e que, inversamente, a conduta dos militantes é determinante para o sucesso da ação revolucionária. Por isso, a conclusão a que chegamos é da necessidade de corrigir os desvios na militância desde já, no interior da própria sociedade de classes. Há dois tipos de contra-argumentos a esta tese, que inclusive são antagônicos: 1) é impossível forjar valores socialistas numa sociedade capitalista; 2) para que revolução, já que é possível forjar valores socialistas por dentro do capitalismo? O primeiro, ancorado na percepção correta de que é impossível corrigir totalmente os desvios nos indivíduos nesta sociedade, leva à naturalização dos desvios sob a crença supersticiosa de que “no socialismo tudo se resolverá”, o que é um passo para a degeneração. O segundo contra-argumento, típico de correntes de pensamento reformistas para as quais é possível haver uma transição pacífica e linear do capitalismo para o socialismo, despreza o fato de que, entre corrigir os desvios na militância e destruir os valores capitalistas na sociedade como um todo, existe um abismo. Isso porque, quando falamos em militância, não estamos falando de indivíduos isolados, mas de indivíduos congregados em torno de organizações. E, como constatou Gramsci, as organizações são formas políticas de organizar a cultura. Elas organizam a cultura política de sua militância, que então se engaja na disputa da direção política e cultural da sociedade. Ou seja: para que avancem na consecução de seu objetivo, as organizações socialistas têm, entre outros, o papel de forjar valores socialistas internamente. Já a tarefa de forjar valores socialistas na sociedade como um todo depende de uma mudança revolucionária na própria estrutura da sociedade. Portanto, a questão que se coloca neste ponto é: como corrigir os desvios na militância no interior da sociedade de classes, se eles também são condicionados por esta sociedade? 4 - Os desvios na militância se corrigem pela práxis, desde que se assuma como tarefa identificá-los e corrigi-los, numa ação permanente e planejada, que envolve organização, formação e lutas. Numa organização, os quadros devem ser antes de tudo educadores, guardiões do exercício da critica e da autocrítica, da tarefa permanente de superação dos desvios. Aliás, é entre outras coisas a capacidade de cumprir estes papéis que faz de um indivíduo um “quadro político”. E, vale reforçar: num momento histórico marcado pela banalização do discurso, o que faz de um indivíduo um educador político é a sua práxis. Ele educa pelo exemplo, muito mais do que pelo discurso. É necessário termos claro que a prática é o critério da verdade, o critério para saber quem de fato cultiva valores e quem não os cultiva, quem de fato se esforça em corrigir os desvios e quem se esforça em mantê-los. Nós temos nos portado como educadores? Qual é a nossa prática? O que nós temos feito? Que desvios há em nossa prática? Nós os percebemos? Se sim, nós temos nos esforçado por corrigi-los? Se não, por que não? O que nos tem impedido de nos portarmos como educadores? O que devemos fazer para atingirmos este patamar? 5 - É muito forte, tanto entre os estudantes como entre os movimentos sociais, a opinião de que o movimento estudantil é tão repleto de vícios que sequer vale a pena ocupar-se dele. De fato, o ME é um ambiente repleto de vícios e repleto de adversidades à correção destes vícios: a origem de classe dos estudantes e todas as implicações que isso tem; o fato de a condição de estudante ser passageira e a alta rotatividade dos militantes num curto período de tempo, o que dificulta a formação política e ideológica; o fato de o ME não ser uma organização, mas nele haver organizações em disputa, sobretudo partidos políticos, o que não raras vezes gera uma situação de luta interna fratricida etc. Se, por um lado, isso tudo é verdade, por outro lado devemos superar a idéia de que o movimento estudantil possui vícios insuperáveis, como se estes vícios fizessem parte da própria natureza do ME. Se existem adversidades incontornáveis no ME – como, por exemplo, a alta rotatividade no ME, coisa que nunca vai mudar – é possível compensar os efeitos negativos dessas adversidades e garantir uma situação, no ME, propícia à construção de valores de uma prática militante, desde que se cumpram determinadas tarefas, que identificamos como os desafios políticos e organizativos do movimento estudantil. Um destes desafios é justamente identificar e corrigir os desvios de conduta presentes no interior do ME e que são alimentados por certas lógicas de movimento. Enquanto não enfrentar estes desafios, o movimento estudantil só acumulará derrotas. Dito isso, cabe então questionar: Será que nós conseguimos de fato superar a idéia, tão predominante, de que o movimento estudantil é invariavelmente viciado? Ou seja, está realmente presente em nossa prática a concepção segundo a qual é possível corrigir os desvios e forjar valores de uma prática militante no ME? Dito de outro modo, será que nossa prática não tem escondido, de maneira sutil e até inconsciente, a concepção de que o ME não é sério? (Um bom exercício: será que a forma como efetivamente e concretamente nos portamos no ME, em tudo, em cada coisa, das menos importantes às mais importantes, seriam as mesmas se estivéssemos em outros ambientes, como, por exemplo, num grupo de estudos institucional, ou num movimento social?). No caso de estarmos de fato agindo conforme a concepção de que o ME não é sério – entendendo que essa concepção pode estar presente em nossa práxis de maneira inconsciente – não estaríamos então contribuindo para a predominância dos vícios no ME? Nós sabemos quais são os desafios políticos e organizativos do movimento estudantil? Se não, o que tem nos tem impedido de identificá-los? Se sim, nós temos convicção neles? Ou seja, nós temos conseguido organizar uma práxis que cumpra com estes desafios? Quais são os desvios que devemos nos esforçar em corrigir Voluntarismo – Voluntarista ou espontaneista é aquele companheiro ou aquela companheira que age por impulso, seja por não compreender a importância do planejamento e da organização, seja por má fé, no caso de querer dirigir um processo à força, na marra. No caso do companheiro que é voluntarista por incompreensão, não se pode esperar nada dele, pois ele faz somente o que quer e na hora que bem entender. Geralmente ele não gosta de ver nada organizado. Quando se depara com planejamento e organização, ele reage, e tenta associar a organização com mandonismo. Ele não compreende que ele é que é individualista. Já o voluntarista por má-fé é aquele companheiro que age por si só, sem consultar ninguém, se for preciso contra a decisão coletiva, porque objetiva ou “rebocar” os demais, fazer com que os demais o sigam na marra, ou então criar uma situação de diferenciação entre ele e os demais, para ele poder se auto-proclamar o “revolucionário” , diferente dos “pelegos” que não o seguiram. O voluntarismo é também uma forma de egoísmo porque coloca tudo a perder, tanto a luta específica que está em curso como o movimento como um todo. (Não se deve confundir o voluntarismo com o trabalho voluntário, e que Che pregava com tanto entusiasmo. São coisas bem diferentes. No trabalho voluntário, o “voluntário” é sinônimo de militante. Nele, a organização e o planejamento estão sempre presentes). Indisciplina – A indisciplina é a postura daquele companheiro que não cumpre com suas tarefas, com suas obrigações perante o coletivo, seja por discordância da decisão que o coletivo tomou, seja por desleixo puro e simples. No caso da indisciplina política, nunca um militante vai concordar com absolutamente tudo que é decidido no coletivo do qual faz parte. Todo aquele que faz parte de um coletivo diverge em algum momento de orientações, encaminhamentos, decisões do coletivo, mas, se ele tem disciplina, ele as segue. Não se trata aqui de fazer o elogia do pensamento único. Aquele que diverge não deve deixar de divergir e mesmo de expor sua divergência. Ocorre que existem espaços adequados para fazer isso. Aquele que é indisciplinado não consegue ter essa postura. Ele só age se a decisão tomada pelo coletivo coincidir com o que ele acha que deveria ser a decisão. Se ele diverge, ele não segue as decisões coletivas: ou não faz nada, simplesmente boicota o coletivo, deixa de cumprir com suas obrigações, ou, pior, age contra a decisão do coletivo. Trata-se aqui, portanto, do problema da quebra da unidade da ação. No movimento estudantil, o coletivo é o próprio movimento, e não a corrente da qual o militante faz parte. Isso não quer dizer que o militante não deva ter disciplina para com a corrente da qual faz parte, mas sim que a corrente deve ter uma postura de construção do movimento e unidade de ação no movimento. No entanto, não é isso que tem predominado: uma assembléia decide algo, mas cada um age conforme a opinião do seu grupo ou a sua própria opinião. Trata-se de uma indisciplina tão endêmica que sequer se distribuem tarefas e obrigações no ME, como se o não cumprimento de tarefas e obrigações por quem discordou da decisão fosse algo líquido e certo, e como se só competisse aos que concordaram com a decisão o seu cumprimento. É a naturalização da indisciplina. Desleixo – O desleixo é um tipo de indisciplina. É a postura daquele companheiro que faz as coisas de qualquer jeito, sem cuidado, sem atenção, sem se preocupar se a tarefa está sendo bem feita ou não. O desleixado enxerga as tarefas como exterioridades, como se ele não tivesse convicção e compromisso com o bom cumprimento delas. Ele se preocupa mais em cumprir as obrigações o mais rápido possível do que em garantir que o objetivo da tarefa seja alcançado. Isso quando se preocupa. O desleixo é a falta de cuidado e de atenção em geral, e não apenas com as tarefas importantes. É desleixo não cuidar do espaço físico, da preservação e organização das coisas, da limpeza dos espaços. O militante que tem essa postura não percebe a importância da organização do espaço e das coisas para o trabalho político. Uma forma de desleixo muito recorrente é a falta de pontualidade, que prejudica imensamente o trabalho político. São diversas formas de desleixo, que têm na base a inconsistência no compromisso do militante com a causa no qual está envolvido. Falta de iniciativa – Na luta pelo socialismo, é preciso ter iniciativa. Há situações que impõem a necessidade de fazer algo que não estava previsto originalmente, ou seja, de tomar a iniciativa – o que não se confunde com voluntarismo! Ter iniciativa é a postura daquele que se desdobra para cumprir com os objetivos, com persistência e criatividade, para garantir que a tarefa seja cumprida mesmo diante das maiores adversidades, fora dos meios previstos originalmente. A falta de iniciativa é a postura daquele que se contenta em “fazer a sua parte”, mesmo sabendo que, numa determinada situação, se ele só fizer a sua parte haverá algum tipo de prejuízo político. A falta de iniciativa é por isso também falta de compromisso com a causa, e denota uma inconsistência na convicção para com a causa. É a postura daquele que se coloca como se fosse um funcionário de uma empresa capitalista, e não como um militante. Pessimismo exacerbado e otimismo exacerbado – Aparentemente antagônicos, o otimismo e o pessimismo são duas variáveis que necessariamente devem ser combinadas na práxis política. Ao exprimir essa necessidade de uma combinação dialética de ambas, Gramsci formulou a expressão “pessimismo da razão e otimismo da vontade”, numa síntese que procura minimizar o lado subjetivista da compreensão da realidade e torná-la o mais objetiva possível. Assim, o pessimismo exacerbado e o otimismo exacerbado são duas formas antagônicas de subjetivismo ou impressionismo, que têm em comum a incapacidade de analisar corretamente uma dada correlação de forças – ou seja, a própria força e a força do inimigo – para, ao medir com justeza uma e outra, orientar a ação sem superestimar nem subestimar uma ou outra. Isso acontece porque a correlação de forças é dinâmica e contraditória, e nem sempre conseguimos percebê-la corretamente, seja por uma carência de formação política, seja por dogmatismo. Num caso ou noutro, o pessimismo exacerbado é a postura daquele companheiro que superestima a força do inimigo e subestima a própria força, ao passo que o otimismo exacerbado é postura daquele companheiro que superestima a própria força e subestima a força do inimigo. E, tanto num caso como noutro, subestimar e superestimar geralmente se confundem com imaginar: se imagina uma realidade que não existe. Assim, por não saber analisar corretamente a situação e a realidade, o otimista exacerbado imagina ser forte, quando na realidade não é tão forte assim ou não tem força nenhuma, e imagina que o inimigo ou o adversário é fraco, quando na verdade o inimigo ou o adversário é forte. E, por imaginar dessa forma, ele acha que pode fustigar e atacar o adversário ou o inimigo e com isso avançar, quando, na verdade, se ele o fizer, ele será derrotado e retrocederá em relação à situação em que se encontrava. Inversamente, o pessimista exacerbado imagina que é fraco, quando na verdade tem força, mas ele não percebe, e que o adversário é forte, quando na verdade o adversário não é tão forte assim. E, por isso, ele acha que, se atacar, será derrotado e retrocederá quando, na verdade, o provável é que avance. Por isso o pessimismo exacerbado é também chamado de derrotismo. Nunca é certo que a justa medida entre otimismo e pessimismo conduza a vitórias e avanço, pois a luta de classes é muito dinâmica e complexa. No entanto, é líquido e certo que a exacerbação, seja do otimismo seja do pessimismo, conduz a derrotas e retrocessos. Irresponsabilidade – A irresponsabilidade é a postura daquele companheiro que não mede as conseqüências do que faz e do que fala, e que, em função de sua irresponsabilidade, coloca os objetivos do coletivo a perder, ou compromete outros companheiros. O irresponsável cria situações que atrasam o trabalho político, que desviam o foco, que retrocedem o acumulo alcançado. É irresponsável aquele que age de maneira irresponsável, mas também aquele que se omite de maneira irresponsável. Comodismo – Existem duas formas de acomodação entre a militância. De um lado, o comodismo é a postura daquele companheiro que não cria, mas se limita a reproduzir operações padrão, que não toma a iniciativa de melhorar seu trabalho, sua militância, e não se preocupa em aperfeiçoar suas tarefas e o modo de executá-las. De outro lado, e num nível mais grave, o comodismo é a postura daquele que se acomoda com seu padrão de vida, estável, e que resiste a tudo o que implicar a desestabilizaçã o de sua vida, mesmo que essa estabilidade só se sustente na base do não avanço da luta. Geralmente, este tipo de comodismo vem acompanhado da redução da luta pelo socialismo apenas a uma luta simbólica, ou seja, ao plano do discurso, sem que haja a perspectiva concreta e material do socialismo. Na prática, esta forma de comodismo é a negação do espírito de sacrifício na medida em que é a negação do conflito, que exige sacrifícios pessoais. Nesse caso, o comodismo é sinônimo de burocratismo. Ao contrário do que prega o senso comum, burocrata não é aquele que atua na retaguarda, em tarefas que não o envolvam na linha de frente do enfrentamento – pois a atuação na retaguarda por uma parte da militância é essencial para o sucesso do trabalho político. O burocrata é o acomodado. Ele pode fazer o discurso mais radical, as ações direitas mais corajosas, mas se na prática ele estiver satisfeito com o que ele faz, no sentido da suficiência do que ele faz, daquilo por si só ser a sua realização, então ele está acomodado e, nesse sentido, a sua conduta carrega este traço que é a essência do burocratismo: a acomodação. Inconstância – A inconstância é a postura daquele companheiro que ora está presente, ora está ausente; ora se compromete com as tarefas e cumpre as tarefas, ora não se compromete com nada. A inconstância é um sintoma de inconsistência ideológica, e de uma falta de compromisso real com a causa. Individualismo – O individualista é a postura daquele que só faz as coisas se ele pensar como será feito, se ele organizar, se ele comandar, não raras vezes se ele fizer sozinho. O individualismo não se confunde com a postura de reserva. Há companheiros que são reservados: falam pouco, guardam sua privacidade etc. Estes companheiros não são individualistas. O individualista é aquele que quer que as coisas sejam “do seu jeito”, e que as ações lhe garantam auto-satisfaçã o. O que motiva o individualista é o espírito de competetividade, e a satisfação de ser melhor do que seus companheiros. Se os demais fazem bem a sua tarefa, o individualista se sente mal porque não se diferenciou e não se destacou. Geralmente o individualista se sente oprimido pelo coletivo, de modo que, para ele, o coletivo é um estorvo. Aliás, o invididualismo se opõe ao espírito de coletividade. Sectarismo – O sectarismo é a postura daquele companheiro que não sabe lidar com a divergência face àqueles que compartilham da mesma causa, mas acreditam que os caminhos para alcançá-la são outros. O sectário é aquele que agride aquele que com ele diverge. Não raras vezes, o sectário elege como inimigo aquele que com ele diverge, isso quando não o elege como inimigo prioritário, mesmo que esteja do seu lado da trincheira. Existem dois tipos de postura sectária. Há aquele que exprime seu sectarismo através da ação ostensiva: ele agride, denuncia, gasta boa parte de seu tempo com patrulhamento ideológico sobre aquele com que diverge. Este sectarismo se confunde com o denuncismo. Mas há também aquele que exprime o seu sectarismo de uma outra maneira, a saber, através do total desprezo: nesse caso, o sectarismo consiste no desprezo total e completo por tudo o que diz respeito àquele com quem diverge. Ao invés de agredir, aqui a conduta é oposta: o sectário não gasta um pingo de energia em abrir qualquer canal de diálogo com aquele com quem diverge. É como se este não existisse. Como se vê, em ambos os casos, o sectarismo envolve um sentimento de superioridade, que se confunde com a auto- proclamaçã o. O sectarismo deriva, portanto, da incapacidade de enxergar a si próprio. Vê- se também que o sectarismo é um sintoma da incapacidade de diferenciar inimigo de adversário. Moralismo – O moralismo é a postura daquele companheiro para quem tudo depende da vontade: se as coisas vão bem, é porque a vontade de alguém, ou de um grupo, determinou que fossem bem; e, se as coisas vão mal, é porque a vontade de alguém, ou de um grupo, determinou que fossem mal. O moralista desconsidera a articulação dialética repleta de contradições entre o ambiente e os sujeitos, os quais agem sobre o ambiente ao mesmo tempo em que são influenciados pelo ambiente. No lugar disso, o moralista isola e abstrai os sujeitos da realidade concreta por eles vivida, para então postular a realidade como um efeito do qual a causa seria a vontade dos sujeitos – portanto, numa linha de raciocínio positivista, anti-dialética. E, ao fazer isso, ele sempre procura identificar a culpa e a não culpa dos sujeitos pelo sucesso ou fracasso de uma dada situação: “fomos derrotados por culpa de fulano, ou do grupo tal”, “fomos vitoriosos graças a beltrano”. Por isso, o moralismo é também uma forma de determinismo: o determinismo da vontade. Geralmente, o moralismo vem acompanhado de um profundo sectarismo: por isso, ao tratar do moralismo, falamos também do patrulhamento moral, que é a postura daquele que gosta de enfiar o dado na cara dos outros e lhes acusar no seu caráter, na sua índole moral. O moralista é aquele para quem ele próprio e o grupo do qual ele faz parte é que têm a linha justa, enquanto os outros não têm, e que isso é uma questão de vontade, de caráter. Não se trata aqui de desconsiderar o papel dos indivíduos na luta de classes para o bem e para o mal, nem tampouco de “colocar tudo no mesmo saco”. É certo que os indivíduos agem pela vontade, e que sua ação contribui para que o resultado seja positivo ou negativo. No entanto, é preciso colocar a responsabilidade individual no seu lugar: como constatou Marx, “os homens fazem a história mas não fazem como querem, e si de acordo com as condições que lhe são impostas”. O ponto é que a vontade contribui, não determina as situações. Além do que, a vontade é também ela influenciada (animada) pela conjuntura, pelo ambiente. E se uma situação é negativa ou positiva, não é por culpa dessa ou daquela pessoa ou grupo, por mais que alguns contribuam para que seja negativa e outros contribuam para que seja positiva – mas, mesmo neste caso, é preciso perguntar: “por que alguns agem de uma forma e outros de outro?”, “o que os levou a agir da maneira como agem?”. Nesse sentido, ao contrapor a própria moral (pretensamente justa e boa) com a moral de outrem (supostamente injusta e ruim), a linha de raciocínio moralista não passa de um pretexto para escamotear a realidade: de um lado, ela serve para impedir a percepção dos próprios vícios, a auto-crítica e a correção dos desvios, e para alimentar a auto-proclamaçã o; de outro, serve para imaginar e hiperdimensionar vícios nos outros, e para alimentar a crença de que uma dada situação negativa mudará se os “culpados” pela situação forem denunciados. Vanguardismo – O vanguardismo é a postura daquele companheiro que subestima a importância e a necessidade de educação das massas através de processos de lutas que, em si não são revolucionários, mas que, pela sua radicalidade numa determinada situação, ganham uma dimensão revolucionária. Um caso exemplar é o da Reforma Agrária no Brasil: em si mesma, a Reforma Agrária não é anti-capitalista. Ao contrário. No entanto, no contexto da luta de classes no Brasil, pela radicalidade desta bandeira face ao atraso das elites, ela ganha uma dimensão revolucionária. É possível identificar duas idéias antagônicas que organizam a divergência entre o vanguardismo e o anti-vanguardismo: reboque das massas e educação das massas. Para a corrente de pensamento focada na educação das massas, a revolução depende de um processo de acumulo prolongado de forças, pelo qual as massas sejam organizadas em torno de lutas que façam sentido para elas, cujo significado elas entendam e abracem, e que têm o potencial de ganhar uma dimensão revolucionária pela sua radicalidade, num processo em que as massas ganhem consciência, criando assim as condições para a revolução e o socialismo. Na perspectiva da educação das massas, não se trata de negar a necessidade de uma vanguarda revolucionária: ao contrário, essa vanguarda só pode ser forjada no curso do processo de educação das massas, e não fora dele. Por isso, nunca se pode isolar-se das massas. Trata-se aqui, portanto, de uma visão anti-vanguardista. Já para a corrente de pensamento focada na idéia de reboque das massas, a tarefa nesta conjuntura é a constituição de uma vanguarda revolucionária capaz de, num contexto de crise revolucionária, rebocar as massas no rumo do socialismo. Nessa linha de pensamento, acredita-se que as contradições da realidade por si só criarão e despertarão o ânimo nas massas para a insurreição e que, aos revolucionários, cabe conduzir este ânimo através do discurso mobilizador. Trata-se, portanto, de uma visão vanguardista. O vanguardismo, na medida em que desdenha a educação das massas e que confunde a educação das massas com reformismo, conduz ao isolamento das massas e, conseqüentemente, à derrota. No caso do movimento estudantil, não se pode falar em massas como quando falamos de massas ao nos referirmos à sociedade, a começar pela origem de classe dos estudantes. No entanto, ainda assim o vanguardismo se aplica ao ME porque, a despeito dessas diferenças, o fato é que as massas estudantis têm o potencial de se envolver em processos de lutas as quais, se em si mesmas não são revolucionárias, podem contribuir para o acumulo de forças de diferentes maneiras. Inversamente, o vanguardismo no movimento estudantil têm conduzido ao esvaziamento do ME e a sucessivas derrotas. Basismo – O basismo é a postura daquele companheiro para quem tudo tem sempre que passar por assembléia. Por isso o basismo é também chamado de assembleismo. O basista geralmente é aquele que tem uma rejeição a priori à direção política. Ele acredita que a direção tem sempre uma postura dirigista, autoritária, mesmo quando não há essa postura. Ele sempre acha que a direção quer manipular a base, enganar a base. Entretanto, embora basista, ele desdenha a organização da base, a formação política para a base, pois isso soa como manipulação. Ele quer que a base fale e pronto. Para ele, o importante é que os processos sejam conduzidos pela ação espontânea da base. Nesse sentido, o basismo é também um tipo de espontaneismo. Para ele, se a base fala sob influência da direção, a base está sendo manipulada. Este é o basista autêntico, sincero. Mas existe também o falso basista, ou aquele que é basista por conveniência. Este é basista por má-fé. Isso acontece quando, numa conjuntura de assembléias esvaziadas, mas favoráveis às suas posições, ao invés de se engajar na formação de novos militantes e no trabalho de base, o falso basista insiste que tudo tem que passar por assembléias, caso contrário o encaminhamento não será democrático, será burocrático. Seja ele vanguardista, seja ele direitista e contra o movimento, não importa: se a situação de esvaziamento lhe é favorável, ou seja, se a assembléia esvaziada lhe é favorável, ele se torna um basista. Mas esse basismo não é consistente. A evocação à vontade da base não passa de pretexto. O que está em jogo para o falso basista não é que a base imponha a sua vontade, mas, justamente o contrário, que a base não participe das decisões. Por isso, os falsos basistas combatem toda e qualquer proposta que visa a ampliar a participação. Autoritarismo – O autoritarismo é a postura daquele companheiro ou grupo que quer definir as linhas políticas, as ações, o comando, enfim, as decisões e a direção de tudo sozinho. O autoritário é aquele que, se no discurso diz valorizar a direção coletiva e a democracia interna, na prática ele desdenha tanto um como outro e passa por cima de ambos para fazer valer a sua vontade. Existem diversas maneiras de organizar a democracia interna, a ampla participação e a direção coletiva numa organização. Elas dependem de esquemas formais, mas também de uma postura. Numa organização, uma instância pode formalmente ter o direito de tomar uma decisão, mas se não existe uma opinião amadurecida sobre o assunto na base, a direção sabe que a decisão não pode ser tomada, mesmo que formalmente possa. Uma direção autoritária nunca assume essa postura. Não exercício da critica e da auto-crítica – Numa organização, qualquer militante é suscetível de cometer erros e desvios de conduta, mesmo os mais experientes e coerentes. Por isso, o exercício da crítica e da auto-crítica é essencial, o que não se confunde com policiamento. Muitas vezes, por vergonha, sentimento de impotência, falta de convicção ou qualquer outro motivo, deixa-se de criticar um companheiro quando é necessário criticar, dizer que ali existem desvios. Infelizmente, o mais comum é ou não criticar, quando a crítica deve ser feita, ou criticar para ofender, humilhar, desmoralizar, criando um clima de competição e luta interna. Ambas as posturas são um desvio. Assim como o é a falta da auto-crítica. Como sabemos, é raro um militante ter o hábito de fazer a auto-crítica. E, quando vemos um militante fazer auto-crítica, o mais comum é a auto-crítica se resumir ao apontamento de insuficiências: “eu fiz tal coisa, mas foi insuficiente” , “nós fizemos tal tarefa, mas foi insuficiente” . O fato é que a maioria dos companheiros têm um forte bloqueio ao exercício da auto-crítica. Para eles, fazer a auto-crítica é como humilhar-se a si próprio. Isso porque a crítica, infelizmente, é vista como um ato moral. No entanto, a crítica não é um ato moral, mas político. Não perceber a importância e o lugar da crítica e da auto- crítica é um desvio dos mais graves, pois a correção de todos os desvios depende exatamente do exercício da crítica e da auto-crítica. Por isso, as organizações revolucionárias devem ter como prioridade educar os militantes ao exercício da crítica e da auto-crítica, instituindo maneiras, momentos e espaços adequados para isso. Isso implica quebrar o senso comum que faz uma abordagem moralista da crítica. Auto-suficiência – A autosuficiência é a postura daquele companheiro ou grupo que não compreende a necessidade de somar forças com outros atores – sejam outros companheiros tomados individualmente, sejam outros grupos –, e que se consideram suficientes para que a a luta avance, se conquiste vitórias e se acumule forças para a classe trabalhadora. A auto- suficiência surge e se sustenta sobre motivações as mais diversas, sendo que o mais comum é o vanguardismo. Mas nem sempre é assim. Pode ocorrer de um coletivo se considerar auto-suficiente não por ser vanguardista e sectário, mas por compreender que não “tem perna” para fazer outra coisa senão o cumprimento das tarefas de seu próprio coletivo. Mesmo neste caso, que poderiamos chamar de uma auto-suficiência que não é mal- intencionada no sentido de que não necessariamente desdenha ou superestima os outros, ainda assim é um desvio porque despreza a necessidade de dar um sentido geral para as lutas, que se desenvolvem de maneira isolada, para forjar a unidade da classe. Isso não quer dizer que devamos “atirar para todos os lados”, dispersar energias, mas sim que, na luta social, a construção de laços com outros atores é uma necessidade constante, mesmo quando não “temos perna” e a necessidade de concentrar energia e ter foco se tornam maiores. Quando, por exemplo, o MST levanta a bandeira “Reforma Agrária, uma luta de todos”, deixa clara a compreensão de que, se a Reforma Agrária é uma luta travada no campo, ela só poderá ser alcançada se for ganha também na cidade. Eis aqui um bom exemplo de uma postura que não é auto-suficiente. Auto-proclamaçã o – A auto-proclamaçã o é um desvio típico de organizações (partidos, correntes etc) ou de candidatos, pelo qual a organização ou o candidato se coloca, se apresenta, fala de si mesmo com uma linha que, explícita ou implicitamente, afirma ser ele o único que detém a verdade e a linha justa. Existem certas expressões de linguagem muito típicas da auto-proclamaçã o, que sempre aparecem nos momentos em que as organizações empregnadas deste vício falam de si mesmas. Eis alguns: “a alternativa”, “a vanguarda consciente”, “o único que...”. É lógico que cada organização acredita ser a sua linha a linha justa, ou a mais próxima de uma linha justa ideal. E é natural e legítimo que cada organização procure expressar essa concepção. Portanto, quando falamos de auto- proclamaçã o como sendo um desvio, não se trata aqui de fazer o elogio de um pluralismo vazio, sem linha política. Estamos falando da forma como a organização se coloca, fala de si mesma, o que pode chegar ao nível da arrogância. É possível construir a própria linha sem ser arrogante. Além disso, ao contrário do que podemos pensar à primeira vista, uma organização pode ser auto-proclamató ria e não ser sectária, não se considerar auto- suiciente, até mesmo fazer auto-crítica etc. Portanto, a auto-proclamaçã o não é necessariamente sinônimo de sectarismo, auto-suficiência e negação da auto-crítica. É, sim, uma crença em si mesmo geralmente sincera, mas totalmente cega. Ou seja, é o desvio de que hiperetima a si mesmo por não compreender que, na luta de classes, não há uma organização que seja “a alternativa”, “a vanguarda” – como se houvesse apenas uma organização a ocupar este papel. Por isso é que, ao estudar as revoluções no século XX, Marta Harnecker forjou o conceito de “vanguarda compartilhada” : exatamente para expressar que, num processo de ascenso das lutas de massas, estando a classe trabablhadora organizada e em luta, diversas são as organizações que contribuem decisivamente para o avanço e para o triunfo da classe. Aparelhamento – Assim como a auto-proclamaçã o, o aparelhamento é um desvio típico de organizações. Ocorre quando um grupo faz do espaço coletivo – geralmente uma entidade – extensão de si, portanto, um espaço privado. O aparelhamento não é o esforço em tornar coletivo a linha política do grupo. Este esforço é natural. Todo e qualquer grupo almeja difundir suas idéias e propostas. O problema é quando a adoção de uma linha não se dá num processo de debates e apropriação da linha no coletivo, mas de maneira artificial e burocrática, sem que seja garantido o espaço democrático de discussão e decisão. Dado um certo senso comum, que associa aparelhamento com a presença de partidos no movimento – o que é compreensível pois não são poucos os partidos que aparelham as entidades – é importante ter claro que nem sempre o aparelhamento é feito por partidos. Uma entidade pode ser aparelhada por um grupo de extensão, por uma organização não partidária (não raras vezes os ditos “independentes” , quando ocupam o espaço da entidade, aparelham tanto quanto os partidos), até mesmo por um grupo de amigos. Aliás, a maioria dos Centros Acadêmicos no Brasil é hoje aparelhada por grupos de amigos, que se reunem no CA e fazem do espaço a sua casa. Deslealdade à classe trabalhadora – A deslealdade à classe trabalhadora é a postura daquele companheiro ou de um grupo que, por razões diversas, age de uma maneira contrária aos interesses da classe. Essa postura se pode ser isolada e pontual, mas pode não ser. Aqui, estamos falando daqueles casos em que o companheiro ou a organização adota uma lógica de intervir na realidade profundamente marcada pelo pragmatismo – e que, no passado, já levaram muitos militantes para o lado oposto da trincheira, alguns por ideologia, outros porque foram comprados. Por conta dessa associação entre pragmatismo e deslealdade à classe, a palavra pragmatismo carrega uma conotação muito pejorativa. Porém, no sentido original e correto do termo, pragmatismo é sinônimo de objetividade. O pragmatismo de que se fala de maneira pejorativa é justamente a confusão entre meios e fins, ou seja, quando um meio se torna um fim, e aquele fim original é esquecido, secundarizado. Essa postura conduz irremediavelmente aquele que a adota a colocar-se contra a classe trabalhadora. Um exemplo muito claro e muito atual disso é o processo que uma parte da esquerda brasileira viveu e está vivendo no período recente, marcado pela subordinação de tudo que lhe diz respeito à luta institucional e eleitoral. Neste processo, aquilo que originalmente era um meio – a disputa de eleições e a ocupação de espaços institucionais – tornou-se um fim em si mesmo, e aquele que era fim originalmente traçado – o fortalecimento da classe trabalhadora e a inversão da correlação de forças na sociedade para criar as condições de uma revolução – foi esquecido. Embora não se resuma às alianças estabelecidas, é aí que a deslealdade à classe se manifesta mais claramente na medida em que geralmente conduz a alianças com a burguesia. No entanto, é importante dizer que não é necessário ir tão longe para ser desleal à classe. A acomodação, da qual discutimos, é também uma forma de deslealdade à classe. Antes até: se a práxis política de um militante ou de um coletivo não faz diferença na luta de classes, das duas uma: ou bem ele, preocupando- se com essa situação, procura corrigir sua práxis – e nesse caso ele é leal à classe; ou bem também ele é desleal à classe, pois, por mais que este militante ou coletivo faça o discurso da defesa da classe, o fato é que ele está acomodado com a situação em que se encontra. Dogmatismo – O dogmatismo é a postura daquele companheiro que transforma as contribuições e teses deste ou daquele autor em dogmas, como se fossem modelos ou receitas a serem aplicadas em qualquer realidade e situação, e desprezam o estudo de cada situação e realidade para apreender as suas próprias condições, contradições e determinações. A trajetória da esquerda brasileira é marcada pelo dogmatismo. É apenas a partir da década de 60 que começa a ser abalada a hegemonia do dogmatismo no pensamento de esquerda, então organizado pelo PCB. O principal expoente dessa geração de intelectuais que se destacam a partir da década de 60 foi Florestan Fernandes. Ele, ao lado de outros, elabora uma interpretação original da realidade brasileira, que procura combinar a contribuição dos clássicos com o estudo das particularidades da realidade brasileira para, daí, extrair a origem, a natureza e o caráter da luta de classes no Brasil. Sua linha de pensamento, anti-dogmática – o que não significa relativista, pois ela é inteiramente comprometida com a classe trabalhadora – é uma referência para nós. Patrulhamento ideológico – O patrulhamento ideológico é a postura daquele companheiro que gasta seu tempo e energia demarcando posição publicamente com seus adversários com quem tem divergências de natureza política ou ideológica. Geralmente, aqueles que têm o hábito de fazer patrulhamento ideológico o fazem de maneira ostensiva, e o patrulhamento ideológico assume a forma do denuncismo. Isso porque aquele que age dessa forma acredita que a denuncia das linhas ideológicas seus adversários acumule para a classe trabalhadora. E ele pouco ou nada contribui para o real fortalecimento da classe, na medida em que concentra todo o seu tempo e energia nisso. Isso quando não contribui, com seu sectarismo, para fragmentar a classe. Assédio ideológico – O assédio ideológico é a postura daquele companheiro que coloca o recrutamento de militantes para a sua organização acima de tudo e que, assumindo esta postura, utiliza-se de todo e qualquer meio e método para alcançar esse objetivo, inclusive os mais viciados e degenerados, sendo que o mais comum é a utilização das relações pessoais: amizade, tática 2 etc. Por isso, o assédio ideológico é também uma forma de utilitarismo, pois nele um dos lados transforma a relação, que deveria ser uma relação de afeto, cumplicidade, confiança, numa relação desprovida disso tudo, e cujo sentido é apenas a sua utilidade em vista de um certo fim. Nesse tipo de relação, quando não se alcança o objetivo – ou seja, quando não se recruta o militante – o que sobra é geralmente ressentimento e ódio. No movimento estudantil mesmo, em que relações pessoais são amplamente usadas de maneira utilitarista, existem diversos casos de militantes que foram cooptados por meio de relações pessoais e que, após um período, ao romperem com as organizações que os cooptaram, eles as transformaram em inimigas. Essa reação é sintomática! Oportunismo – O oportunismo é a postura daquele companheiro que intervém apenas segundo o que lhe é conveniente, quando e onde lhe é conveniente, e no que lhe é conveniente, mesmo que essa conveniência pessoal seja em prejuízo do coletivo. Nesse sentido, o oportunismo é uma forma de individualismo, com a diferença de que o oportunista calcula o que faz. Para o oportunista, o que está em jogo é tirar proveito próprio de situações, para si ou para o seu grupo. A incoerência é também uma forma de oportunismo: o militante incoerente é aquele que ora defende uma coisa, ora defende outra diametralmente oposta. É muito comum vermos organizações incoerentes no movimento estudantil: numa universidade defendem uma idéia, uma proposta, um método; na outra, defendem o oposto. O critério é o que lhes é conveniente em cada situação. Desvios de natureza pessoal – Procuramos identificar e qualificar alguns desvios, típicos da atividade política, tendo em vista o nosso propósito de fortalecer e ampliar o movimento estudantil e contribuir para que o ME faça diferença na luta de classes, o que exige que no movimento estudantil prevaleça uma prática miliante ancorada em valores socialistas. Além destes desvios que discutimos, existem outros, de caráter mais pessoal, individual, “anteriores” mesmo à condição de militante. Estes, por sua natureza, são mais auto- evidentes, ou seja, nós conseguimos percebê-los melhor, o que não quer dizer que não sejam muito recorrentes na práxis do ME, motivo pelo qual é necessário identificá-los e desconstrui- los tanto quanto os demais que já discutimos. Não vamos aprofundá-los, mas apenas citá-los, já que todos nós temos um grau razoável de compreensão sobre todos estes desvios: hedonismo, personalismo, exibicionismo, picuinhagem, arrogância, agressividade, impaciência, academicismo, competitividade, entre outros. Dentre estes, achamos que merece destaque o academicismo, que é a crença segundo a qual os estudantes têm um papel: estudar para serem bons profissionais e para poderem então contribuir com a sociedade na condição de profissionais. Até ai, não há incompatibilidade entre o academicismo e o ME. O problema começa quando se constata que, na visão academicista, não cabe aos estudantes se portarem como um movimento social: em primeiro lugar, porque o papel dos estudantes não seria este, mas sim estudar – ou seja, o ME seria uma perda de tempo; em segundo lugar, porque os estudantes têm de ser “imparciais”, e o ME é o reino da parcialidade – ou seja, o ME estaria educando os estudantes no sentido oposto do que deveria ser a justa e correta formação dos estudantes para a “imparcialidade” . A despeito de praticamente inexistir no movimento estudantil, o academicismo é a marca do processo de alienação ideológica sofrida pela massa dos estudantes e promovida de diversas maneiras no ambiente universitário e fora dele. Dito de outra forma, se nos debruçarmos em investigar quem é o “estudante comum”, ou seja, aquele que não participa do ME, que não raras vezes não gosta do ME, que não raras vezes sequer sabe que o ME existe, veremos que ele é, antes de tudo, um academicista. Assim sendo, o academicismo é, na universidade, um dos nossos principais inimigos, senão o principal: desconstruir o academicismo é, mais do que condição necessária para a massificação do movimento, o primeiro passo nessa direção.